sábado, 21 de novembro de 2009

Reflexões



“E nem escrever, não, não acho mais que seja trabalho. Durante muito tempo achei que era. Agora não acho mais. Acho que é um não-trabalho. É atingir o não trabalho. O texto, o equilíbrio do texto, é um espaço em si que é preciso reencontrar. Aqui não posso mais falar de uma economia, de uma forma, não, e sim de uma relação de forças. Não posso dizer mais que isso. É preciso dominar o que ocorre de repente. Lutar contra uma força que some e que somos obrigados a capturar sob pena de que ela se ultrapasse e se perca. Sob pena de aniquilar sua coerência desordenada e insubstituível. Não trabalhar é abrir esse vazio para deixar que venha o imprevisível, a evidência. Abandonar, depois retomar, voltar atrás, ficar inconsolável tanto por ter deixado quanto por ter abandonado. Desobstruir de si. E depois, às vezes, sim, escrever. Todos andamos atrás desses instantes em que nos retiramos de nós mesmos, desse anonimato para nós mesmos que trazemos em nós. Não sabemos, não temos noção de tudo aquilo que fazemos.
Escrever, antes de mais nada, é um testemunho dessa ignorância, daquilo que é possível acontecer enquanto estamos ali, sentados à chamada mesa de trabalho, daquilo que engendra aquele material, de estarmos sentados diante de uma mesa com as coisas necessárias para formar as letras sobre a página ainda intocada.”

                                                                       Marguerite Duras – Os Olhos Verdes  p.24

Embalada pela música de Richard Wagner, penso nas minhas inquietações e percebo que à medida que a minha vida passa, elas continuam me assolando tanto quanto nos anos em que mais jovem acreditava na conquista da felicidade sem qualquer resquício de dúvida.
Hoje compreendo um pouco melhor que não adianta tentar livrar-me destas inquietações, elas nasceram e morrerão dentro de mim, serão elas que segurarão a minha mão no momento final. Então, tento acreditar que a experiência começa a me ensinar a domá-las e compreendê-las, aceitá-las como minhas, como parte indissolúvel de mim, o alimento que ora me envenena, ora me alimenta e me faz sentir tão profundamente que não me resta saída senão... ser artista. Essa foi a escolha que fiz, quando nem mesmo sabia que fazia essa escolha. A inquietação de ser/estar viva num mundo que quase sempre me parece incompreensível levou-me ao movimento da dança e hoje me faz cada vez mais querer escrever, ler, aprender, mergulhar nas vidas e nas obras daqueles que me causam profundo sentimento de “intimidade”, uma espécie de diálogo entre habitantes deste mundo que buscam incessantemente um pouco de paz, sabendo no fundo que a paz é como pequenos oásis espalhados ao longo de nossa vida e que paz constante e permanente é uma utopia. Os sonhos da juventude queimaram na fogueira, são cinzas, espalhadas dentro e fora de mim e me pergunto como continuar caminhando pela minha história quando em cada sonho que tinha existe hoje uma espécie de vazio silencioso e desconfiado?
Entretanto, uma dúvida não me assola e é nela que me agarro com as unhas que nem tenho pois larguei o cigarro mas não consigo abandonar o hábito infantil de comer as unhas....... a certeza que a arte, hoje, é o meu tubo de oxigênio. É ela que dá conta das angústias e alivia, traz momentos de calma, no meio de tanta tempestade. Por isso tenho tido necessidade de ir atrás de Rilke, Gandhi, Che Guevara, Bachelard, Wagner, Duras, Rimbaud, Graham, Cézanne, Cecília Meireles, Rosa de Luxemburgo, Deleuze, etc etc.
Ou será que eles têm vindo atrás de mim?
Escolhemos um livro, uma música, uma dança, ou é ela que nos escolhe, nos agarra pela mão sem possibilidade de fuga? Quais os riscos de tais mergulhos? Quanto tempo se consegue ficar sem ar? Existe ar no fundo do mar? Sempre lembro uma das cenas finais do filme “O Piano”, de Jane Campion, quando a personagem principal vai para o fundo do mar amarrada ao seu piano, e lá fica, flutuando no silencio do oceano, entre o limiar da vida e da morte.
Acho que sim, acho que existe oxigênio em tais mergulhos, mas ele é diferente do que se respira cotidianamente e para isso é preciso estar devidamente preparado e saber que existe o preço, a conta vem e é alta, e para mim, ela às vezes toma face e corpo através de uma grande possibilidade de “solidão”. No fundo do mar estamos sós. No fundo, estamos sempre sós.
But how come I never really feel alone?
São as contradições, as ambivalências e as dicotomias que me tiram o sono muitas vezes… como posso me sentir tão solitária e ao mesmo tempo ter a vibrante sensação que acompanhada estou por pessoas e seres e fantasmas que compartilham deste mar?
Encontrei o texto de Duras no livro “Garimpando Memórias” e o reli diversas vezes. Embora ele se refira à escrita, pode perfeitamente falar do ato de criar, dançar, entrar em cena, estar em cena. “É abrir o vazio para que venha o imprevisível”, o que seria isso senão aquilo que fazemos num momento de criação? Capturar as forças que teimam em sumir, abandonar e depois retomar, dominar o que ocorre de repente e transformar tudo isso em algo que comunique, que seja verdadeiro, essencial, extremamente humano...
Gostei tanto do texto que fui atrás de Marguerite Duras. Para minha surpresa, sua vida foi bastante polêmica e contraditória, uma mulher que viveu intensamente as emoções da sua época. Dela, só conhecia o nome. Hoje conheço um pouco mais e mesmo assim é pouco, mas pouco é melhor que nada. E assim segue-se em diante, torcendo para que os “nadas” sejam preenchidos e novamente esvaziados, num vai e vem que me remete à onda do mar, o mar do silêncio e da riqueza, do infinito e do mistério, o mar que existia nos meus sonhos, os sonhos que se transformaram em bolhas, bolhas de sabão, coloridas e inquietas, assim como a minha alma e a música de Wagner.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Turista em Porto Alegre

No último sábado do mês de outubro de 2009, o Meme se embrenhou pelas ruas do bairro Cidade Baixa como parte da pesquisa que está fazendo para o seu novo trabalho, Acessos, que terá estréia no próximo dia 19/11 na casa da Lopo Gonçalves, 176, dentro da programação do Festival de Dança Mesa Verde (www.festivalmesaverde.com.br).

A caminhada histórica, orientada pelo arquiteto Paulo Cesa, incluia a visita ao Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo, antigo Solar Lopo Gonçalves, onde residia a familiaL opo Gonçalves, of course.
Para minha surpresa, em pleno sábado de feriado de finados, havia uma pequena multidão acompanhando o "city tour", que tinha a escolta de dois azuizinhos para ajudar aquele povo todo a atravessar a rua. O calor que vinha do sol e desprendia do asfalto dava a sensação de que poderíamos muito bem estar caminhando em direção às pirâmides do Egito! Mas não... Lá estávamos nós caminhando pela João Alfredo de câmera digital na mão e muitas novas imagens no olhar. Sim, porque não é todo dia que enxergamos a nossa cidade com olhos de turista, olhos que se dispõe a sair do olhar cotidiano e se permitem novas visões. É como estar um pouco do avesso, provoca um estranhamento gostoso, uma familiaridade que dá coceiras, remexe nas nossas pré-concepções de espaço /trajeto / ruas / caminhos.
Pela primeira vez, entrei no Pão dos Pobres (www.paodospobres.org.br), que surgiu em 1895 com o intuito de amparar viúvas e órfãos dos mais de 20.000 mortos dizimados pela Revolução Federalista, uma guerra entre gaúchos em lados opostos. Shame on me, eu não sabia de nada disso....

Como já haviamos pesquisado um pouco nos jornais antigos, não nos pegou de surpresa o fato de que as ruas da Cidade Baixa eram circundadas pelo Arroio Dilúvio, que anos mais tarde teve o seu curso alterado. A cidade era chamada de Baixa porque era assim que era vista pelos que ficavam nos altos da Duque de Caxias, no centro da cidade. Lá embaixo era zona de negros e italianos, blocos de carnaval, centros de religião. Lá ficava também a chácara de Lopo Gonçalves.
É tão esquisito quando o nome de uma rua se transforma numa pessoa de carne e osso, ou melhor, numa pessoa que já foi de carne e osso.... De repente, a Lopo vira o homem Lopo, nascido em Portugal, residente, comerciário e político em Porto Alegre, morto em 1872, um século antes do meu nascimento. Lopo Gonçalves, dentre outras mercadorias, vendia escravos. Por isso, a sua casa-chácara tinha uma alcova onde ficavam aqueles que não tinham liberdade... Alcova, palavra que se usa corriqueiramente - segredos de alcova - é um espaço onde não há janelas, portanto, sem luz solar direta. Vivendo, ouvindo e aprendendo coisas que já se julgavam aprendidas.
Também durante a caminhada, visitamos a Travessa dos Venezianos, tombada como patrimônio histórico, atitude que deveria ser tomada em relação a outros trechos de ruas e avenidas, que ficam a mercê da especulação imobiliária se não tiverem a devida e necessária proteção.

Last but not least, como bem pontuou o nosso guia arquiteto, conhecer uma cidade é também reconhecer a sua arquitetura e lutar pela sua preservação. Os espigões que arranham os horizontes da Cidade Baixa demonstram o descaso do Plano Diretor para com a história que nos cerca. Mas pensando bem, esse descaso não é só por parte das autoridades políticas... A sociedade civil muito pouco faz, pouco curiosa é, falta indignação e mobilização. Na verdade, falta algo que vem antes disso tudo que citei: falta conhecimento, pois sem ele não se sabe porque se está lutando.

obs. fotos de rodrigo shalako